19/06/2020 às 20:57

Não é cilada, Bino!

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5min de leitura

Texto e fotos por Ângela Reck

Quando me perguntam qual o motivo de eu estar viajando de carona de caminhão e produzindo um documentário independente sobre as pessoas que giram em torno dessa profissão, eu poderia mostrar essa fotografia super estilosa, risos. Entendi que o gostar de viagens estava no meu sangue, mas não foi o sangue a inspiração. Sou filha de caminhoneiro e poderia estar produzindo esse documentário para entender a ausência do meu pai em casa quando mais nova, mas foi com a minha vida de mochileira que eu pude entender que foi por escolhas. Únicas histórias que tenho das viagens em família são das memórias da mudança de Santa Catarina para Bahia: fomos em cinco dentro de um caminhão, com todas as nossas coisas e meu pai trabalhando normalmente com descarga e carga. De carona consegui viver como eles vivem, mesmo que um terço das diversas dores e alegrias. Esse documentário não é sobre a vida dos caminhoneiros, é sobre mulheres no volante, famílias afastadas, mecânicos especializados, contadores, facilitadores, estabelecimentos, fiscalização, mas acima de tudo sobre pessoas e suas histórias.

Nós precisamos dos caminhoneiros e os caminhoneiros precisam da gente. A economia é abastecida pelas rotas traçadas durante horas dentro de uma cabine, envolvendo momentos de sonos retirados de uma rotina dura e ao mesmo tempo compensadora. Sentimos na greve em 2018 e continuamos sentindo com a pandemia. Não há mais estrutura nas estradas que deem suporte às viagens dos caminhoneiros. Restaurantes, postos de parada e outros estabelecimentos essenciais para que o motorista tenha uma viagem decente estão fechando. Estruturas essas que já eram dificultadas pelas taxas altas de alimentação ou até mesmo para poder tomar banho, com banheiros sujos e sem luz em alguns casos.

O que não valorizam na profissão de caminhoneiro é que vai além do dirigir: é necessário entender o mínimo de mecânica, muitas vezes fazer a própria contabilidade e acima de tudo ser vendedor eficiente, que além de vender precisa executar. Exercemos prazos de uma necessidade que nem sabemos que existe. Som alto dentro da cabine reflete tentativa de não dormir no volante e cumprir a meta de data e horário da entrega. Carga no seu devido lugar, segue para próximo destino. É um ciclo quase sem fim, encerrando com o esgotamento e mesmo assim escutando com a boca cheia que gostam do que fazem, gostam do verde das estradas, gostam do acolhimento de outras culturas. Ser caminhoneiro é aceitar as doloridas consequências, fazer o possível para estar com quem quer e amar os resultados diários das suas escolhas. É aqui onde a solitude discute com a solidão.

Há sim beleza na dor. Há sim amor na ausência. 

Faz tanto tempo que eu já não lembro, mas a ideia de registrar tudo isso vêm de anos e era daquelas ideias que ficavam somente no papel porque sempre priorizamos o que está disponível naquele tempo atual. Novas paixões surgem, novas metas são traçadas diariamente, daquelas tomadas de decisões em proporções e escalas que nem sentimos, mas dessas percebemos que nada vai do nosso controle. Estava viajando pelo Brasil com o Além das Lentes, quando lembrei que eu tinha um roteiro de documentário jamais explanado e que eu poderia aproveitar os meus deslocamentos de estados para produzir esse material. Na ideia estava tudo certo, mas na prática sempre os problemas ganham caras e nesse caso ações: sou mulher, com isso vem a insegurança de viajar sozinha com um homem, se estou segura vem as piadas dos colegas de profissão, não aprovação da carona pela esposa, e o pior de tudo é a possibilidade de confusão entre educação e estar dando abertura para algo mais. Depois de algumas tentativas infelizes de conseguir carona, um antigo amigo veio para mostrar que ainda há esperança.

Luiz Rech - Pingo

Sabe aquelas conexões que a vida não explica? Com o Pingo foi assim. Como mulher, depois de meses tentando uma carona segura, estava com o Além das Lentes na Bahia durante a pandemia, foi quando o Jean me avisou que seu tio que é caminhoneiro estava no estado e que estaria passando por São Paulo. Seria perfeito por ser conhecido de um amigo meu e por ser o destino que eu estaria indo para fixar residência depois de um ano e meio como mochileira. Entrei em contato e meio sem saber como dizer não, ele aceitou oferecer essa carona. Me desloquei de Salvador até Alagoinhas para encontrar ele, coloquei as minhas coisas no caminhão, seguimos viagem e até o momento não ligamos os pontos entre os sobrenomes iguais. Compartilhei um story no Instagram sobre a viagem e a Angélica Dezen respondeu sobre como eu estava viajando com o tio dela, foi ali que comecei a pensar que ele como tio dela e ela minha prima, qual seria a nossa conexão e foi assim que descobrimos que ele é primo da minha mãe - a minha primeira carona foi com um parente, mesmo sem saber.

"Ave Credo", expressão dele para qualquer situação e sempre com um sorriso no rosto, parece que consigo ouvir. 

Pingo era servidor público dirigindo para prefeitura e bombeiros, ao se aposentar, resolveu colocar o pé na estrada para continuar vivendo. Pingo pingando. Caminhoneiro por opção e mesmo há pouco tempo na profissão, emocionado, não conseguiu falar sobre a família pelo carinho enorme que tem pelos seus filhos. Às vezes por refúgio, outras por necessidade de garantir um futuro bom para sua família, Pingo, pega a estrada e se perde nas paisagens do trajeto com seu caminhão carregado de frutas.

"a televisão não mostra tudo que é de bom no nordeste, mostra somente o que é de ruim, 

mas é mentira, o nordeste é muito bonito, eu amo aqui"

Jean Dalle Laste - Paçoquinha

Jean tem a profissão no sangue, filho de caminhoneiro e mesmo com o pai tentando não engajar o filho na área, Jean acabou seguindo-o. Jean é a pessoa que mais sente falta dos seus filhos e às vezes a profissão parece um fardo por estar longe deles. 

VÍDEO RESUMO

CADÊ AS MULHERES NO VOLANTE, BINO?

MULHER MECÂNICA EM SP

FAMÍLIA

19 Jun 2020

Não é cilada, Bino!

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