21/12/2022 às 02:23

"Era uma vez uma menina vaidosa..."

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Fotografia registrada por um aluno de uma saída fotográfica realizada no Frei Damião, com nome desconhecido.

"Gostamos dos detalhes, dos sentimentos que uma fotografia pode demonstrar. Somos o amor do momento em que seus olhares cruzaram-se, a alegria de seu melhor e sincero sorriso. Não queremos somente uma fotografia, queremos contar uma história de cada um em especial".

NOTAS SOBRE ÂNGELA

Falar do projeto sem contar a minha história é um pouco difícil. Idealizei ele e adaptei conforme a minha vida foi ganhando finalmente vida. Meu nome é Ângela Reck e vou tentar resumir os meus 28 anos. Sou natural de Seara - SC, viajei como mochileira por alguns estados brasileiros com o meu projeto cultural, e fixei residência em Florianópolis devido a pandemia. 

Quando eu tinha cinco anos, minha mãe faleceu e fui morar com uma nova família. Saí de casa com dezesseis anos porque acreditava que não era amada e precisava buscar minha vida. Trabalhei por dois anos e meio em um escritório de contabilidade em Seara, enquanto cursava audiovisual em Chapecó. Em 2013, resolvi morar em Chapecó, e por indicação da minha colega Sabrina, fui conhecer a org Kirka. Fui contratada para ser professora de fotografia e cinema, insegura como uma ainda aluna de audiovisual, acabei trabalhando por um ano e meio com eles. 

Acabei saindo da org porque eu tinha o sonho de ir para Hollywood, queria ser produtora audiovisual e ganhar um Oscar: como todo bom sonho, têm seus imprevistos e mudanças. Trabalhei por uns meses em um escritório de contabilidade até que fui chamada para uma entrevista em uma produtora/canal/agência chamada Rede TV Box. Trabalhei como coordenadora de produção audiovisual, até receber um chamado, minha avó estava doente e precisava de mim. Ali vivi meus melhores sonhos e pesadelos. 

Fotografia por Ângela. Arquivo Pessoal.

Quando eu nasci, ela falava que era eu que iria cuidar dela e não deu outra. Um mês com ela eu já estava surtando, precisava me ocupar além das tarefas de casa, fui atrás, e consegui um emprego no O Boticário. Foi assim que minha avó acabou trocando o dia pela noite e eu já não dormia mais. 

- cuidar da avó, limpar a casa, fazer comida, dar banho na minha avó, ir trabalhar, tentar comer, tentar dormir, tentar ter vida, eram as minhas metas diárias - 

O que eu amava afinal? Cuidar da minha avó me fez repensar muito o que eu fazia da minha vida, o que eu realmente amava e até que ponto eu iria para conseguir o que eu queria ou precisava fazer, ali existia um buraco. Foi nisso que eu pensei, esse buraco abriu quando eu saí do projeto. Era isso que eu amava, meu projeto, meus irmãos, a minha avó e o Cooper.

- cuidar da avó, limpar a casa, fazer comida, dar banho na minha avó, ir trabalhar, tentar comer, tentar dormir, tentar ter vida, reescrever meu projeto e estudar como fazer acontecer, eram essas as novas metas diárias - 

Quando começava surtar com todas essas coisas, eu pegava meu mini coelho, meu caderno criativo e ia para o mato ao som de Jake Bugg. Sumia por horas. Até que isso já não supria mais a minha sanidade. Recebi uma proposta boa para voltar a Chapecó, resolvi ir no advogado para deixar tudo certo e levar a minha junto, estava disposta a pagar sozinha uma enfermeira. Duas semanas depois da reunião, ainda pensando na mudança, minha avó faleceu. Fiquei dois meses sem sair da casa da minha mãedrasta e pude sentir todo amor que eu parecia não ter sentido quando era mais nova. Meu irmão mais novo é o que queria dormir comigo, o coitado acordava a noite com o meu acordar achando que ainda precisava levar leite para a minha avó. Mas ali já não era mais a minha casa. Resolvi voltar para Chapecó, mas tudo era muito forte, tudo fazia lembrar da minha avó, inclusive as pessoas perguntando como ela estava. Resolvi então ir para Florianópolis, meu irmão por parte de mãe estava lá. Quem me levou até Florianópolis foi o meu amigo André, ele também estava de mudança para a ilha. Viemos com o carro rebaixado de tanto peso e a partir daí o coitado virou meu auxiliar de mudanças, foram muitas após essa.

Fotografia por André Arcênio. Arquivo Pessoal.

Em Florianópolis achei que as coisas seriam diferentes, fui com a ideia de chegar lá e conseguir um edital para idealizar o projeto, mas até hoje não sei o que é ganhar um. No começo fiquei na sogra do meu irmão, estava conseguindo um dinheiro como freela e a Ângela independente queria estar ativa de novo. Fui morar sozinha, lá eu dormi no chão porque eu não tinha mais dinheiro para comprar móveis, e tive que devolver os que eu tinha comprado. Minhas cobertas nunca foram tão úteis, viraram minha cama por um tempo, até que a igreja que meu o irmão vai, doou um colchão. Minha base de alimentar era pão com banana. Mas já não estava mais conseguindo pagar o aluguel, fui morar em uma kitnet que não tinha foro, bem no inverno. Florianópolis não é tão frio, mas tem muito vento. O dono da kitnet falou que era para eu morar lá até conseguir um emprego, quando tivesse um, eu começaria pagar aluguel. Nessa kitnet eu tive uma vizinha, a Eliane, ela me ensinou o que realmente é humildade: dividiu comigo a comida que pouco tinha para ela. COMO ASSIM ESSAS PESSOAS ME AJUDANDO? Nunca precisei de ninguém e nunca tinha ajudado ninguém antes. Me deixava mais forte e mais fraca, ao mesmo tempo. Comecei a desanimar a ponto de ir trabalhar no financeiro de uma imobiliária, não podia nem ver a minha câmera e estava disposta a cursar contábeis. 

Fotografia por Lilian. Arquivo Pessoal.

Nessas arrumações de quarto, encontrei o meu caderno criativo, li as minhas escritas sobre como eu queria fazer meu projeto e a fagulha acendeu de novo. O QUE ESTOU FAZENDO DA MINHA VIDA? Comecei pesquisar projetos que eu poderia ajudar com fotografias, não tinha finanças para sair do emprego, então seria eu uma voluntária de final de semana. Encontrei o Lagoa Social, mas cheguei lá e estava o Cidades Invisíveis. Apresentei meu projeto e o Samuel me falou que eu precisava conhecer a comunidade antes de tudo. Era sábado antes do natal, na sexta a noite eu tinha ido trabalhar de bartender em uma empresa e fui direto para o Frei Damião. AMOR À PRIMEIRA VISTA. Cheguei em casa e só queria editar as fotos. No outro dia fui revisar o material e encontrei uma fotografia de uma senhora olhando fixo pra mim, poxa, me encontrei naquela fotografia. A foto estava estourada, errei o foco, e essa mesma foto que tinha descartado já continha tanta história, sem mesmo saber nada das personas dela. 

Fotografia por Ângela Reck. Arquivo Além das Lentes.

Vi que eu tinha gravado uns takes, separei os vídeos, editei e enviei. Amaram e fiquei por um ano como voluntária, mas eu precisava de mais, era o meu projeto que eu queria fazer. Foi então que comecei fazer as atividades extras do projeto: as saídas fotográficas e o cinema ao ar livre.

EU POSSO MAIS? Posso. Resolvi sair da minha garantia financeira, saí da imobiliária porque eu iria pro oeste trabalhar e voltar somente para fazer o meu projeto. Sim, comecei ir para oeste de Santa Catarina somente para trabalhar. Óbvio que ia dar errado, e eu voltei para a saga "pão com banana". Estava cansada, as pessoas não priorizavam pagar fotografia e muito menos quem estava longe, mesmo já com as fotos em mãos. Recebi a proposta para voltar para o oeste de vez, fiquei balançada, mas decidi pela última vez tentar enviar meu currículo em produtoras da ilha. O Fernando da 30 por Segundo me respondeu, disse que não tinha emprego fixo, mas tinha freelas, PERFEITO, ia conseguir trabalhar e fazer o projeto. Não era certeza de trabalho e nem de freela, mas logo enviei mensagem para Concórdia dizendo que eu não ia mais. Uma semana depois fui chamada para um teste e depois do teste mesmo já fui escalada para a gravação do DVD do Dazaranha com a Camerata - pelo visto fui bem. Mais trabalhos bons vieram. Eu já não dava mais conta porque o projeto estava desnorteado a ponto de ter pessoas achando que ele era uma produtora social, eu estava desnorteada. 

Fotografia por Tóia Oliveira. Arquivo Pessoal.

Parecia que nada dava certo. Quando não era problema com câmera, era notebook ou era desânimo mesmo, as coisas precisavam mudar. Uma pessoa que me apoiou nesse momento, hoje em dia não está do meu lado. Minha família não entendia o que eu fazia, um dos meus irmãos dizia que eu fazia por vaidade, mas nem eu entendia, como os outros iriam entender? 

Enquanto estava na imobiliária, tinha visto uma postagem sobre uma missão na Amazônia, opa, quero fazer um documentário e fui, quase um ano depois. Senti um amor tão forte naquele lugar como nunca havia sentido. 

Relato sobre a viagem para a Amazônia

Meu projeto atingiu outro nível e eu ainda não sabia como fazer as coisas. Meu amigo Pedro me indicou para atender no CASE, no centro de menores infratores em Florianópolis. Lá eu consegui entender o real significado e propósito do projeto: buscar e estimular novas oportunidades para pessoas que sentem que não tem seu lugar no mundo. Eu já me senti assim, mas tive meus privilégios de ter pessoas que me amam do lado. E quem não tem? 

Fotografia por Eduarda. Arquivo Além das Lentes.

Dentro do CASE eu fiz o Workshop do Saber. Eles responderam perguntas pessoais e internas, desenharam sobre sonhos e falaram uma palavra que representassem eles. No intervalo o diretor do centro veio falar que nunca tinha visto eles tão empolgados. Ganhei um gás. Depois do intervalo iniciamos a parte prática, eles precisavam criar uma série fotográfica sobre seus sonhos, mas dentro da realidade deles. Resultado:

Fotografia clicada por aluno, registrada dentro do CASE. Arquivo Além das Lentes.

A Era Worldpackers:

Insisti em Florianópolis, até que o Rodolfo da Worldpackers me ligou para ir a São Paulo apresentar o meu projeto por lá. Tudo que eu tinha trabalhado por três anos, consegui em São Paulo em uma viagem, e de quebra, tive o que muito tempo não tinha mais: vida social. Tudo era tão além das lentes que muitas vezes esquecia que ali tinha uma Ângela. Eu queria mais daquilo. Resolvi que ia viajar com o meu projeto, iria viajar um mês e ficar dois meses trabalhando. Comecei a organizar a minha ida e como nada é fácil nessa vida, estragou câmera e fiquei sem notebook. Foi ali que o meu irmão Neliton e minha mãedrasta pagaram por ambos. Não posso desistir agora. Decidi que não teria mais o mês de volta, resolvi que seria uma mochileira, que iria conhecer o meu Brasil, que iria conhecer a nossa cultura. Os perrengues só aumentaram e só me fortificaram a continuar. Tenho marcas no meu corpo contando minha história, tenho pessoas que me amam, tenho pessoas que estão sempre comigo mesmo na distância, hoje tudo é muito ALÉM DAS LENTES e estou feliz com isso. Acredito na importância do que estou fazendo. 

Fotografia por Heloísa Reck. Arquivo Pessoal.

RESUMO:

O Além das Lentes é um projeto sociocultural, ensino fotografia e cinema em espaços com vulnerabilidade através de um álbum de fotografia, com desenho e escrita também. Além das oficinas, tem a série documental além das lentes, e através do audiovisual, as pessoas contam suas histórias e disponibilizo no nosso canal do YouTube. Elaboramos também um workshop para executar em centros socioeducativos, foi tão bem aceito que resolvemos desenvolver para empresas, como forma de manter o projeto e incluir jovens das comunidades. Seguimos nosso percurso de muito conhecimento, e no "FRAGMENTOS" é onde compartilhamos sobre as nossas aventuras. Eu sempre coloco no plural eu e o projeto, porque já somos um só <3

Fotografia por Luiz Johnathan. Arquivo Além das Lentes.


21 Dez 2022

"Era uma vez uma menina vaidosa..."

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